quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Trajetória de sentidos: de livros & usos


Tem gente que não aprecia adquirir livros em Sebos ou realizar leituras em materiais usados. Em geral, as pessoas argumentam que os livros chegam com páginas rasgadas ou faltosas, com rascunhos ou sublinhados feitos à esferográfica azul ou vermelha, com as capas em péssimo estado de conservação, dentre outros danos ou empecilhos à boa apreciação. Há, ainda, os que se ressentem dos vendedores, que alegam o não cumprimento de envio do produto ou do prazo de entrega.

Argumentações e protestos à parte, tenho sido feliz com as minhas aquisições de livros em Sebos à distância. Foi assim durante a minha pesquisa no Mestrado em que pude adquirir obras preciosas de Cecília Meireles voltadas às crianças. E, igualmente, no Doutorado em andamento em que venho estabelecendo contato com livros de Heloísa Marinho e Nazira Abi’Saber, autoras do século XX, consideradas, hoje, de manuais pedagógicos.

Dessa maneira, sempre que almejo a aquisição de uma obra de difícil circulação recorro aos Sebos. Quando os livros chegam, sinto-me tomada pela emoção. Gosto de sentir, ver e ressignificar os sinais do tempo. Estabelecer, imageticamente, um perfil psicológico-afetivo ao usuário anterior e às condições de produção e circulação da obra. Tais experiências conferem maiores sentidos à leitura, tornando-a mais calorosa, mais dinâmica, mais viva.

Penso que esta deve ser uma das funções das bibliotecas: possibilitar, além do encontro dos(as) leitores(as) com a visão de mundo expressa/compartilhada pelo(a) autor(a), um grande encontro de leitores(as). Leitores(as) que, através do livro, se tocam, se energizam; que estabelecem, entre si, uma trajetória de sentidos.


Hercília Fernandes,
Cajazeiras, 09 de agosto de 2012.


domingo, 5 de agosto de 2012

Mulher e Poesia na Era Blog: “Os Casos da Maria Clara”


   Hercília Maria Fernandes
Professora Doutoranda CFP-UFCG / UFRN


RESUMO: O texto constitui parte analítica do artigo: Voz Poética Feminina na Era Blog: "Os Casos da Maria Clara", publicado na Revista Línguas e Letras, Unioeste, Vol. 12, n. 23, 2011. O artigo expande a ideia de que a poesia feminina, na produção contemporânea, transcende aos valores da tradição falocêntrica e do misticismo religioso que, em períodos anteriores, contribuíram para sufocar vozes; remetendo as mulheres, em suas práticas de leitura e escrita, à expansão de uma “poética do silêncio”. O texto desenvolve alguns elementos imbricados na criação feminina atual, situando a poesia elaborada por mulheres, na virtualidade, como uma escrita que se define pela diversidade de atmosferas, temas e linguagens. Para tal feito, o artigo apresenta os dados de uma vivência literária desenvolvida na Internet por doze autoras que se encontram em diversas localidades do Brasil e apresentam formações e atuações profissionais várias em suas práticas cotidianas. Com essas atitudes, o estudo, ao debater a multiplicidade que perpassa a produção poética de mulheres na contemporaneidade, situa “os casos” da obra “Maria Clara: uniVersos femininos” - coletânea nascida em um novo espaço de escrita e textualização -, no cerne das discussões sobre gênero e poesia.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero e poesia. Era blog. Maria Clara: uniVersos femininos.


Introdução


A Internet, com seus múltiplos espaços de comunicação e informação, tem contribuído para formar uma nova racionalidade pautada na “subjetividade opinativa” (RODRIGUES, apud CERQUEIRA; RIBEIRO; CABECINHAS, 2009, p. 117). Diversos sujeitos sociais, então excluídos dos meios tecnológicos convencionais, têm experimentado, através dos espaços virtuais, dentre eles os blogs, o prazer de difundir as suas ideias e sentimentos; participando mais ativamente da produção de linguagens e saberes.
No tocante à participação das mulheres, verifica-se um grande número de escritoras e poetisas na virtualidade. Na Blogosfera, cenário virtual que aglomera inúmeras propostas de escrita e leitura literárias, dentre elas a poesia, as mulheres têm vivenciado uma oportunidade ímpar de construção de “um teto todo seu”. Buscam instaurar a identidade de suas vozes que, na contemporaneidade, se concebe heterogênea e, simultaneamente, portadora de singularidades. Entretanto, a busca pela identidade das vozes femininas não condiz, exclusivamente, ao direito à expressão. Mas, simultaneamente, à afirmação das singularidades que permeiam as vidas das mulheres. Tendo em vista que os gêneros são construções históricas, aos quais foram atribuídos diferentes papeis nas práticas sociais, cujas ressonâncias delimitaram subjetividades e relações de poder entre homens e mulheres (BOURDIEU, 1999; SCOTT, 1990).
Dessa maneira, contrariamente aos cânones literários que desprestigiam a criação poética feminina, compreende-se que as mulheres contemporâneas – detentoras de formações, leituras e inúmeras experiências de mundo -, buscam expandir um discurso em que o “eu” das mulheres se apresenta, de fato, “feminino”. Tal realidade implica em uma percepção pautada nas distintividades de seus próprios universos, nas suas diversas maneiras de sentir, refletir e, consequentemente, externalizar o mundo.
É dentro desta perspectiva de análise que se concebe a composição poética de 12 autoras que integram o blog voltado à apreciação de poesia feminina Maria Clara: simplesmente poesia[1]; cuja proposta online resultou na publicação do livro Maria Clara: uniVersos femininos. Obra estruturada em 256 páginas distribuídas em “apresentação”, “prefácio”, “12 capítulos” e “posfácio”. Tendo sido publicada pela LivroPronto Editora, de São Paulo-SP, e lançada durante a 21ª. Bienal Internacional de Livros de São Paulo, em agosto de 2010.

Os casos da Maria Clara

A ideia de reunir, em único espaço virtual, as 12 poetisas que compõem a coletânea Maria Clara: uniVersos femininos - cujas vozes expandem-se, na obra, em capítulos individuais intitulados com os próprios nomes e/ou representações imagéticas pertinentes às autoras -, surgiu nas próprias situações de interação entre as poetisas que participam, entre si, do processo de criação e fruição literárias, na Internet, por intermédio de blogs pessoais. Assim, o blog Maria Clara: simplesmente poesia, como espaço destinado à produção literária elaborada por mulheres, foi criado nos fins de 2008 e início de 2009 com o objetivo de, a priori, favorecer a leitura e a produção de saberes. Sendo composto por colaboradoras, cujas publicações realizam-se, mensalmente, por ciclos de postagens.
Os blogs, segundo Blood (apud CERQUEIRA; RIBEIRO; CABECINHAS, 2009), consistem páginas na Internet atualizadas com certa regularidade. As páginas se apresentam dispostas em forma de posts e permitem combinar texto, imagem e som. Os blogs, além dos links nas escritas dos posts, que encaminham os leitores para outros locais na rede, dispõem de blogroll, isto é, uma lista de blogs que o autor acompanha e que serve para identificação do grupo e/ou tribo a qual o autor blogueiro e/ou blogger pertence ou deseja pertencer.
A interação entre autores e leitores, na rede virtual, é assegurada por caixas de comentários, através das quais os internautas oferecem opiniões sobre as postagens, podendo esse contributo ser ou não moderado pelos bloggers. Para Robert Macdougall (apud CERQUEIRA; RIBEIRO; CABECINHAS, 2009, p. 116), as pessoas participam nos blogs de forma a interagir com um público invisível, porém os bloggers respondem aos comentários como se estivessem numa situação de interação social real.
Essas últimas enunciações podem ser consideradas a partir das interações entre as autoras que compõem o blog Maria Clara: simplesmente poesia que, além de reunirem as suas vozes para construção de um ambiente virtual próprio, materializaram as suas ideias, sonhos e sentimentos em suporte material impresso; ampliando, assim, as expectativas e experiências de leitura e escrita vivenciadas no âmbito da virtualidade.
São elas, segundo a ordem alfabética dos nomes: Adriana Godoy (Belo Horizonte–MG); Adriana Riess Karnal (São Leopoldo–RS); Hercília Fernandes (Caicó–RN); Lara Amaral (Brasília–DF); Lou Vilela (Recife–PE); Maria Paula Alvim (Belo Horizonte–MG); Mirze Souza (Rio de Janeiro–RJ); Nina Rizzi (Fortaleza–CE); Renata Aragão (Juiz de Fora–MG); Talita Prates (Cajuru–SP); Úrsula Avner (Belo Horizonte–MG); e, Wania Victoria (Porto Alegre–RS).
As autoras apresentadas são possuidoras de origens, formações e contextos múltiplos. Não havendo, portanto, um ideal único ou padrão estabelecido de linguagem literária e orientação referencial. Poder-se-ia destacar, como homogêneo no grupo, o amor à poesia, o zelo à palavra e o profundo respeito à expansão de suas vozes. Apesar de integrarem um mesmo ciclo de relacionamentos na Blogosfera que, por sua vez, apresenta certa afinidade de grupo social. Nesse sentido, as vozes das marias claras[2] podem ser definidas pela pluralidade, considerando que são pertinentes a mulheres com formações e atuações na educação, na medicina, na história, no direito, no jornalismo, na administração... Mas, que se dedicam, também, às relações afetivas, aos cuidados com a família e a casa, e, simultaneamente, à arte de criar e apreciar poesia.
Além das singularidades expressas, as marias localizam-se em diferentes lugares do Brasil, do Norte ao Sul, o que permite uma miscigenação cultural patrocinada pela multiplicidade de contextualizações e linguagens. Essas anunciações apresentam-se sintetizadas na voz da poetisa Lou Vilela, que apresenta, no poema Às Marias (VILELA, 2010, p. 99-100), a diversidade dos uniVersos femininos das marias claras:


Hoje é dia de Maria...

Maria dos morros dos velórios
das sacadas das calçadas [...]

Maria da fome, dos talheres de prata
erudita popular
(“ir-me-ei...; toma lá da cá!”)

Bruta lapidada
peçonhenta panaceica
(dese)equilibrada
puta indissoluta
(r)evolução estelar

Todas belas, todas manias
com ou sem cria
Marias emoção!

Sim, todo dia é dia de Maria!
que tomba levanta que sonha
que cala, das vozes-maria

Maria (im)perfeição
Maria poesia

- Ave, Maria!


Segundo Coelho (1999), a consciência histórica das situações de opressão e violências simbólicas que permeavam o cotidiano das mulheres levou à crise do discurso masculino hegemônico. Assim, poder-se-ia elucidar que a expansão da crítica feminista favoreceu a ruptura dos valores da tradição falocêntrica e do misticismo religioso que, em períodos anteriores, submeteram a escrita feminina a uma poética do silêncio.
No tocante à criação das marias claras, verifica-se que as autoras buscam estabelecer as suas identidades como sujeitos históricos ao imprimir, no mundo, uma consciência crítica de seus universos. Por isso convocam os leitores, no dizer da prefaciadora, profª. Drª. Ana Santana Souza, “a pensar, principalmente, sobre a condição de mulher, essa espécie ainda envergonhada, na definição de Adélia Prado” (SOUZA, A. S., 2010, p. 15).
Não se esquivam, portanto, em pronunciar opiniões em torno das relações humanas, das ideologias e convenções que perpassam as práticas sociais. Essas elucidações podem ser apreciadas no poema Filosofia barata (GODOY, 2010, p. 30), da autora Adriana Godoy, de Belo Horizonte-MG. No texto, a poetisa questiona as desigualdades e exclusões disseminadas no organismo social, chamando atenção para as inversões históricas convencionadas por ideias que atribuem, às problemáticas sociais, explicações sobrenaturais:


reverencio os mistérios
mas não os creio divinos

a dor e o sofrimento não são divinos
a humanidade feder e exalar horrores [...]

há mistérios multitudinários
mas ninguém escolheu
comer o pão que o diabo amassou
ser miserável ter fome e desprezo
lutar em uma guerra inaceitável e desigual
morrer aos milhões por bala perdida ou por pão
à míngua ou solidão?

não me fale em livre arbítrio
a escolha não é essa
quem escolheu sofrer até a exaustão?

reverencio os mistérios
mas não me fale em deus[3]


Além de inquietações sociais, há na criação poética das marias a externalização dos desejos sensuais das mulheres em que o discurso feminino transgride as normas da convenção e os interditos sexuais, apresentando consciência espiritual e corpórea em versos ardentes e sensuais. Conforme se observa no poema A um poeta (RIZZI, 2010, p. 161), da historiadora e poetisa Nina Rizzi, residente na cidade de Fortaleza-CE:


eu vou te lendo e pouco a pouco
meus olhos verdes, beijo lento, alcançam
o azul das melancolias de picasso;

meu corpo renascentista, fremente, vai
braillando, incendiando como um poema


A clareza das mudanças de valores que permeiam as vozes femininas na contemporaneidade, seja no plano das ideias, da linguagem ou dos comportamentos femininos, aparece externalizada, com notória elegância semântica, em o texto Poeta (KARNAL, 2010, p. 53), da professora Adriana Riess Karnal[4], de São Leopoldo-RS:


Quisera eu ser poeta
indecente
Pura pretensão.
Poeta é Adélia, Hilda e Clarice.
Poucas verdadeiras o são.

Poeta tem língua incandescente
dente amarelado do palavreado
do palavrão [...]

Escrita com tinteira
Elegante
Quisera eu ser poeta
e ter meu livro na estante.


Nesse sentido, uma das qualidades das vozes que compõem a obra Maria Clara: uniVersos femininos diz respeito à abertura da linguagem à metalinguagem, à intertextualidade e às diversas referências de leitura. As marias revelam que, para além das faculdades imaginativas, refletem paradigmas e dominam técnicas de composição. Essas elucidações se apresentam em Elementar (ARAGÃO, 2010, p. 181), da poetisa Renata Aragão, de Juiz de Fora-MG, em que a autora expande por meio de um sentir/pensar/fazer metalinguísticos uma soma de elementos que povoa o ser e/ou a condição do poeta:


De que é feito o poeta?

De matéria
etérea
ou concreta?

Do fato
que vivencia
ou da utopia
que projeta?

Ele é feito
de sopro
ou de barro?

Ele habita
o corpo
ou a alma?

O poeta levita
ou mergulha?

A escrita
lhe é fagulha
ou despiste?

O poeta acredita
que existe?


Em relação aos elementos rítmicos e sonoros, destaca-se a criação da médica Maria Paula Alvim, de Belo Horizonte-MG. Em o poema Mulheres tônicas (ALVIM, 2010, p. 119), texto que se expande em 6 (seis) atos, a poetisa esbanja humor, ludicidade e movimento rítmico ao fazer uso de proparoxítonas e aliterações com a consoante “r”. Segundo se pode ler em o primeiro ato do texto intitulado Cândida, a médica:


Era a tímida típica, estrábica, pálida e asmática. Espírito ético, pródigo.
Engolia críticas e sapos pétricos. Máscara pacífica.
Apesar da sólida clínica, lágrimas a faziam líquida. Náufraga sem fôlego.
Morreu de cálculo nefrético crônico. Trágica estatística, a propósito.


Para Souza A. S. (2010, p. 16), a criação poética das marias realiza “iluminuras poéticas várias, surpreendendo, não raro, as expectativas do leitor”. Assim, outra nuance de suas vozes refere-se às figuras de linguagem. Segundo declara a crítica no prefácio intitulado Noivas na estante: “Não é possível citar todas as vezes que fui freada por figuras como cachorros, carro quebrado e ursos brancos ou um realista mea culpa. O riso de um ataque de nervos também me surpreendeu, assim como uma rua suja de despeitos” (SOUZA, A. S., 2010, p. 16-17).
Dessa maneira, destacam-se, nos poemas, metáforas associadas às imagéticas de borboletas, corujas, vaga-lumes, cachorros, ursos, pássaros, etc. Assim como aos quatros elementos alquímicos: a terra, o fogo, a água e o ar. Igualmente, o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, a luz e a escuridão povoam o imaginário poético das autoras. Essas qualidades expandem-se em os versos de Vozes da escuridão (AVNER, 2010, p. 229), da psicóloga Úrsula Avner, poetisa de Belo Horizonte-MG:


quando a noite repousa
estrela despenca do céu
borboleta corre ébria e nua
absoluta
coruja pia
lamento de quem vigia
o sono da noite


Imagens ligadas às memórias, às gostosuras, às meiguices e às desilusões dos sonhos de menina igualmente reverberam em suas vozes. Essas entonações fluem em versos imagéticos e autobiográficos[5] nos poemas Doce de batata (VICTORIA, 2010, p. 237), da poetisa Wania Victoria, médica em Porto Alegre-RS. E, em Duas vidas (AMARAL, 2010, p. 83), da poetisa brasiliense, formada em jornalismo, Lara Amaral. Leiam-se os fragmentos textuais:


Minha avó e eu sentávamos no chão
Passávamos horas recortando receitas de doces
E colando em um grosso caderno de capa dura
Lambuzávamo-nos nas palavras [...]
Entre risadas e garfadas
Fartávamo-nos de vida
Ela já se foi, faz tempo
Mas naqueles dias que a saudade em mim transborda
Feito leite quente derramado depois que ferve
Me pego folheando meu caderno de receitas
Meu doce álbum de fotografias.

____________

A criança dentro de mim
Vez ou outra aparece
Me prega peças [...]

Me pergunta onde estão os sonhos
As paixões, todos aqueles planos
Por que estou na contramão?

Só sei dizer que o carro quebrou
Antes de eu conseguir
Tentar outra direção.


As dores e os sofrimentos femininos também ressoam nos poemas e repercutem sobre os sentidos e sentimentos dos leitores, como em os versos de Autorretrato (SOUZA, M., 210, p. 139), da poetisa Mirze Souza, do Rio de Janeiro-RJ. Na escrita, por meio de afirmações e negativas, a autora revitaliza as cores, as formas e as sombras do passado herdado. Porém, ao estabelecer analogia com a obra inacabada de Mondrian, aponta a uma perspectiva futura:


Sou a lágrima furtiva
O engano em forma de vida
Da fotografia, sou o negativo.
Na natureza, sou o desvio.
Não sou a sombra, sequer o abrigo.
Do destro, sou a mão esquerda
Na companhia, sou a ausência
Das palavras, sou o silêncio,
Sou o ápice da dor.
Sou o espinho que feriu
Em forma de coroa, o Criador.
Sou a mãe que não vingou
Borboleta sem cor
Perdida num mundo
Imundo de amor?
Sou a obra inacabada
de Mondrian,
Sou o que ele não acabou.


A consciência histórica de eu feminino, bem como a transgressão aos valores da tradição, trafega toda a criação poética das marias. No texto Da justificativa (PRATES, 2010, p. 200), a psicóloga e musicista Talita Prates, de Cajuru-SP, atenta às deformações que, simbolicamente, constituíram as representações femininas. Em versos livres e criativos, a poetisa acena aos desperdícios de vida então configurados pelas promessas dos ideais românticos:


: que ela espera
o dia
- grande dia!
em que o fato
notável (quase mágico)
justificará sua vida.
(aprenderá - em tempo
que o Sentido
- maior
não vem de fora?
, nem veste trajes de pompa?)

[
intriga-me
o quanto de vida
se perde na espera de:
]


Esperar, historicamente, segundo elucida Souza A. S. (2010), tem sido uma das atividades das mulheres: “Esperar a chegada do amado, a hora do parto, o príncipe encantado, o reconhecimento de seu trabalho e de sua arte”. Todavia, as vozes das poetisas contemporâneas, ao transformar “as esperas em matéria de poesia” (SOUZA, A. S., 2010, p. 17), expandem a convicção de que pode “haver felicidade sem que se precise morrer” (FERNANDES, 2010, p. 66). Essas elucidações fazem sentido se se considerar, conforme poetiza Fernandes (2010, p. 64), que:


Meu eu feminino é concha
entreaberta. Ninho de possibilidades
onde se interpõem lépidas
promessas.

Meu eu feminino transpõe animus
: tem pressa!


Considerações finais

Mediante as reflexões delineadas ao longo deste artigo, entende-se que a criação poética elaborada por mulheres na contemporaneidade, especificamente na “era blog”, busca instaurar uma identidade própria às mulheres pautada nas singularidades dos universos femininos.
Se até pouco tempo, a escrita feminina portava inexpressiva valorização, esse desmerecimento por parte dos cânones literários se configurou devido as privações e as exclusões a que foram submetidas as mulheres nas práticas sociais cotidianas. Não se trata, portanto, de as mulheres escreverem de forma “goiabada”, excessivamente sentimental, segundo elucida a poetisa Nina Rizzi em sua escrita de posfácio na obra Maria Clara (RIZZI, 2010, p. 255).
Se as mulheres, por longos anos, escreveram banalidades e trivialidades do cotidiano feminino, essa realidade se deve ao fato de terem sido anuladas, historicamente, como sujeitos por ideologias construídas através da categoria gênero (SCOTT, 1990), que, aos homens, favoreceu o empoderamento e, às mulheres, o claustro, o interdito, o silêncio.
Todavia, as mudanças em curso, especialmente as tecnológicas, contribuem para que se realize um movimento de resistência aos valores herdados. Colaboram para que as mulheres encontrem as singularidades de suas vozes por meio da consciência histórica das sombras do passado que, segundo elucida Coelho (1999, 2002), apontam caminhos à “clara” compreensão do presente.
Assim, a criação poética e a interação entre autoras e autores nos blogs podem oferecer abertura ao empoderamento das mulheres, considerando que os blogs têm se revelado instrumentos capazes de proporcionar mudanças na cultura, na comunicação, no jornalismo, nas relações sociais, já que abrem “caminhos à democratização ao acesso à palavra, ao espaço público, ao enriquecimento da conversação social” (PINTO, apud CERQUEIRA; RIBEIRO; CABECINHAS, 2009, p. 117).
Além de consistirem instrumentos de participação social, os blogs promovem experimentações artísticas. Dada a constituição do espaço, em que se podem combinar múltiplas linguagens, o blog amplia horizontes de escrita e ressignificações textuais. Através do uso de hipertextos, as escritoras e os escritores inauguram um novo espaço de escrita e textualização que apresenta vantagens ao processo de criação (MARCUSCHI, 2004. Levam os internautas a participar mais efetivamente da elaboração textual, tornando-se, simultaneamente, autores e interlocutores de obras literárias (MARCUSCHI, 2004, p. 83).
É nesse contexto de mudanças de mentalidades, de subjetividades opinativas e rebeldes, de novos espaços de produção de saberes e poéticas várias que se situam os “casos” da Maria Clara: uniVersos femininos. Criação poética de 12 vozes contemporâneas que, além de envolver ternura, sensualidade, subjetivismo e intensidade - qualidades do lirismo feminino -, expande uma multiplicidade de tons - por vezes graves e dissonantes -, e uma variedade de referências nos seus (en)cantos poéticos. Atributos literários que não passam despercebidos e, como tais, reverberam a historio(grafia) das mulheres, cujas escrituras mostram-se capazes de inaugurar, parafraseando Adélia Prado, “reinos e linguagens” (FERNANDES, 2010, p. 14).


Referências

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AMARAL, Lara. Duas vidas. In: FERNANDES, Hercília (Org.). Maria Clara: uniVersos femininos. São Paulo: LivroPronto Editora, 2010, p. 83.

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ARCE, Alessandra. A pedagogia na “Era das Revoluções”: uma análise do pensamento de Pestalozzi e Fröebel. Campinas, SP: Autores Associados, 2002.

AVNER, Úrsula. Vozes da escuridão. In: FERNANDES, Hercília (Org.). Maria Clara: uniVersos femininos. São Paulo: LivroPronto Editora, 2010, p. 229.

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WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.


Notas:

[1] Para visitar o blog Maria Clara: simplesmente poesia, ver o endereço eletrônico: http://mariaclara-simplesmentepoesia.blogspot.com/
[2] Ao longo do texto destacam-se duas formas de grafar o nome “Maria Clara”. Em relação aos títulos do blog, bem como da obra em análise, utiliza-se iniciais “maiúsculas”. E, quando em referência às autoras, adota-se letras iniciais “minúsculas” como forma de posicionamento político perante as relações de dominação que, simbolicamente, compuseram a categoria gênero e a historiografia das mulheres (SCOTT, 1990).
[3] Em sua criação, Adriana Godoy, assim como várias autoras na obra, aboli o uso de letras iniciais maiúsculas, demonstrando uma consciência política da linguagem diferentemente dos cânones da gramática normativa.
[4] Adriana Riess Karnal é também tradutora, como costuma dizer em seu blog, “nas horas vagas”. Aproveita-se a ocasião para agradecer a sua contribuição no abstract deste artigo, disponível na publicação da Revista Línguas e Letras.
[5] Na obra Maria Clara: uniVersos femininos apresentam-se vários poemas com viéses memorialísticos, dentre os quais destacam-se: Queridas avós, de Lara Amaral (2010, p. 93) e Sell, de Renata Aragão (2010, p. 193).


ADVERTÊNCIA:

Esta é uma versão resumida das discussões propostas no artigo “Voz Poética Feminina na Era Blog: Os Casos da Maria Clara”. Assim, é no Trabalho Completo, especificamente na leitura do tópico Voz Poética Feminina: do Silêncio à Transgressão, que os leitores e as leitoras encontrarão o exame das categorias que constituem o desenvolvimento analítico do texto, dentre elas "poética do silêncio e transgressão". Disponível para download AQUI.


PARA REFERENCIAR:

FERNANDES, Hercília M.. Voz Poética Feminina na Era Blog: “Os Casos da Maria Clara”. Línguas e Letras, Vol. 12, n. 23, Unioeste - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel, 2011. ISSN 1981-4755 (versão eletrônica).